sexta-feira, 26 de julho de 2019

A ÚLTIMA DAMA DA NOITE – Rafael Rocha

Quarto capítulo do romance lançado no ano de 2002
..........................
Marco Cícero soube da proximidade do “encantamento” de Maria Rosa exatamente quando deslizava em sua cadeira de rodas do quarto à sala de estar para o café da manhã.
A fumaça branca alcançou-o na sala e um cheiro adocicado de ameixas invadiu suas narinas. As lembranças acordaram-no ainda mais. Adiantou a cadeira de rodas até a varanda e ali se deixou ficar quedo com as lembranças.
Sua filha Marly pôs-se a seu lado. Olhando-a, ele viu nos olhos da moça o espanto de quem não entende mistérios e muito menos realidades fantásticas. Um sorriso bailou imperceptivelmente nos lábios e fê-lo acariciar as mãos da filha.
Assim, ambos ficaram envoltos pela fumaça e por odores estranhos exatamente às seis da matina. O semblante de Marly buscava enfrentar os olhos de Marco, mas ele os fechara para mergulhar nas reminiscências.
Respeitando o pai e sua história de vida, ela acariciou levemente o rosto do homem e deixou-o sozinho na varanda.
Recordava...
Quem eu quero não me quer/ Quem me quer mandei embora / E por isso já nem sei / O que será de mim agora...
Os dedos percorriam o violão com grande intimidade. O instrumento musical era o corpo da mulher amada, as cordas os sentidos. A música a voejar no ar se esvaía no prazer de ter sido criada, manipulada e acariciada com a experiência de dedos e mãos tão mágicas. Os frequentadores do bar se deixavam levar pela voz de Marco Cícero, como hipnotizados. As mulheres da vida esqueciam, por instantes, que estavam a vender o corpo e se entregavam por inteiro ao prazer da melodia triste e plangente, levada às janelas dos puteiros, onde desaparecia sobre os clamores de gemidos, ais e uis e dos rangidos das molas das velhas camas patentes.
Passo as noites meditando / Revivendo meu castigo/ No meu quarto de saudade / Solidão mora comigo
Os olhos de Marco pousaram na linda mulher de pele branca e grandes olhos castanhos a espiá-lo na mesa defronte e seus dedos quase esqueceram a melodia a dar sequência nas cordas do violão. Soube naquele instante: tinha alguém para usufruir a noite consigo. Viu, num relance, os olhos da fêmea dando-lhe a mensagem de que seria sua companhia noturnal até as estrelas desaparecerem do firmamento.
Por onde anda quem me quer? / Quem não me quer onde andará?/ O que será da sua vida? / Da minha vida o que será?
Levantou-se e, dedilhando o violão, dirigiu-se para os olhos de Maria Rosa que o fitavam embevecidos, com brilhos insinuantes de lubricidades inconfessáveis.
Ambos saíram do bar lado a lado, dobrando numa das ruas transversas à Avenida Marquês de Olinda, em direção à Vigário Tenório. Os fregueses do boteco de Tião Marinheiro ficaram a escutar a voz de Marco Cícero distanciando-se, e depois deram vazão aos seus instintos, levando os copos cheios de cerveja às bocas, acendendo cigarros, dando risos pueris e fazendo sinais às meninas da noite”, que só então começavam a “fazer sala” para eles.
Não sou capaz de ser feliz / Nos braços de um amor qualquer/ Ah, se uma fosse a outra/ Que eu amo tanto e não me quer.
Porém, os desvarios sexuais na grande cama de casal da madame” quase põem Marco Cícero em pandarecos. Acordou na manhã seguinte com os raios do sol a entrar pela janela do quarto da pensão. Vendo-se sozinho e nu, com a carne do corpo lacerada pelas unhas cortantes da mulher, amaldiçoou a hora em que a conhecera e se deixara levar pelos seus encantos.
“Devia estar muito bêbado! Ora, porra! Que papel de burguês de merda estou fazendo! Caralho!”
A porta se abriu inundando de luz o aposento e Marco Cícero ficou embevecido com a aparição. Nua, com os pequenos seios de mamilos arrebitados, Maria adentrava o quarto com uma bandeja cheia de comida nas mãos, onde também se via um estojo de primeiros socorros. A pele macia e branca da fêmea mostrava ao homem que ele não tinha se enganado na escolha da beleza para aquela noite. E, ainda mais, o cheiro a sair do corpo feminino começava a deixá-lo em transe ou, melhor dizendo, como um animal no cio.
Maria Rosa notou tudo isso.
− Coma primeiro pra ficar mais forte. Que ôme”! Quase me mata na noite passada. Fudedô” do cacete tu é, visse?
− Esquece a comida. Não tenho fome alguma. É você...
− Eu sei... Sei... Mas será muito mió cumê” o que eu trouxe e deixar que eu faça uns consertos nesses arranhões. Desculpe, mas fui obrigada a enfiar as unhas em tu antes da minha perseguida cair abaixo, visse?
− Você é linda! Você é...
− “Dispois... dispois... dispois... Seje” bonzinho e coma pra ficar “fortinho”. Sou tua “subremesa”, certo?
A sobremesa, na realidade, foi um “repasto” nunca experimentado por Marco Cícero. As carícias feitas em seu corpo pela experiente mulher punham-no em estado de excitação tão desesperado, que via até formigas deslizando nas paredes entrar em trabalhos sexuais.
Quando se compenetrou que deveria dar seqüência aos trâmites da verdadeira paixão, sentiu a mulher tentando por todos os meios fugir do seu contato. Mesmo assim ele buscava-a, sedento e faminto, querendo conhecer seus ardilosos segredos, mergulhar nos seus recônditos mistérios. Sabia-se um bom amante, mas naqueles instantes matutinos estava superando-se em todos os sentidos. O desejo escorria por suas vísceras como as águas do Capibaribe encontrando-se com as do Beberibe, buscando as espumas do mar.
De repente, notou como a mulher enfraquecia suas defesas, enfiava-se com tudo e quase toda dentro dele, agoniada, molhada, deslizante, suada e praticamente vencida. Ouviu-lhe o grito furioso de fêmea no cio, o gemido longo e gutural, seguindo-se o gozo mais fantástico que ele nunca vira na vida. Pela boca, pelos olhos, pelas narinas e pelos outros orifícios do sinuoso corpo, Maria Rosa soltava longos e odoríficos vapores de fumaça branca e o envolvia num abraço mágico e atordoante.
Voltando de suas reminiscências, Marco Cícero, antes de chamar sua filha e pedir-lhe que pusesse a mesa para o café da manhã, exclamou: 
− E agora ela está morrendo! Como é que pode morrer uma mulher como aquela? Como é que morre uma mulher como aquela?...

Nenhum comentário:

Postar um comentário