Quarto capítulo do romance lançado no
ano de 2002
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Marco Cícero soube da proximidade do “encantamento” de Maria Rosa exatamente quando deslizava em sua
cadeira de rodas do quarto à sala de estar para o café da manhã.
A fumaça branca alcançou-o na sala e um cheiro adocicado de ameixas
invadiu suas narinas. As lembranças acordaram-no ainda mais. Adiantou a cadeira
de rodas até a varanda e ali se deixou ficar quedo com as lembranças.
Sua filha Marly pôs-se a seu lado. Olhando-a, ele viu nos olhos da moça
o espanto de quem não entende mistérios e muito menos realidades fantásticas.
Um sorriso bailou imperceptivelmente nos lábios e fê-lo acariciar as mãos da
filha.
Assim, ambos ficaram envoltos pela fumaça e por odores estranhos
exatamente às seis da matina. O semblante de Marly buscava enfrentar os olhos
de Marco, mas ele os fechara para mergulhar nas reminiscências.
Respeitando o pai e sua história de vida, ela acariciou levemente o
rosto do homem e deixou-o sozinho na varanda.
Recordava...
Quem eu quero não me quer/ Quem me quer mandei embora / E por isso
já nem sei / O que será de mim agora...
Os dedos percorriam o violão com grande intimidade. O instrumento
musical era o corpo da mulher amada, as cordas os sentidos. A música a voejar
no ar se esvaía no prazer de ter sido criada, manipulada e acariciada com a
experiência de dedos e mãos tão mágicas. Os frequentadores do bar se deixavam
levar pela voz de Marco Cícero, como hipnotizados. As mulheres da vida
esqueciam, por instantes, que estavam a vender o corpo e se entregavam por
inteiro ao prazer da melodia triste e plangente, levada às janelas dos
puteiros, onde desaparecia sobre os clamores de gemidos, ais e uis e
dos rangidos das molas das velhas camas patentes.
Passo as noites meditando / Revivendo meu castigo/ No meu quarto de
saudade / Solidão mora comigo
Os olhos de Marco pousaram na linda mulher de pele branca e grandes
olhos castanhos a espiá-lo na mesa defronte e seus dedos quase esqueceram a
melodia a dar sequência nas cordas do violão. Soube naquele instante: tinha
alguém para usufruir a noite consigo. Viu, num relance, os olhos da fêmea
dando-lhe a mensagem de que seria sua companhia noturnal até as estrelas
desaparecerem do firmamento.
Por onde anda quem me quer? / Quem não me quer onde andará?/ O que
será da sua vida? / Da minha vida o que será?
Levantou-se e, dedilhando o violão, dirigiu-se para os olhos de Maria
Rosa que o fitavam embevecidos, com brilhos insinuantes de lubricidades
inconfessáveis.
Ambos saíram do bar lado a lado, dobrando numa das ruas transversas à
Avenida Marquês de Olinda, em direção à Vigário Tenório. Os fregueses do boteco
de Tião Marinheiro ficaram a escutar a voz de Marco Cícero distanciando-se, e
depois deram vazão aos seus instintos, levando os copos cheios de cerveja às
bocas, acendendo cigarros, dando risos pueris e fazendo sinais às “meninas
da noite”, que só então começavam a “fazer sala” para eles.
Não sou capaz de ser feliz / Nos braços de um amor qualquer/ Ah, se
uma fosse a outra/ Que eu amo tanto e não me quer.
Porém, os desvarios sexuais na grande cama de casal da “madame”
quase põem Marco Cícero em pandarecos. Acordou
na manhã seguinte com os raios do sol a entrar pela janela do quarto da pensão.
Vendo-se sozinho e nu, com a carne do corpo lacerada pelas unhas cortantes da
mulher, amaldiçoou a hora em que a conhecera e se deixara levar pelos seus
encantos.
“Devia estar muito bêbado! Ora,
porra! Que papel de burguês de merda estou fazendo! Caralho!”
A porta se abriu inundando de luz o aposento e Marco Cícero ficou
embevecido com a aparição. Nua, com os pequenos seios de mamilos arrebitados,
Maria adentrava o quarto com uma bandeja cheia de comida nas mãos, onde também
se via um estojo de primeiros socorros. A pele macia e branca da fêmea mostrava
ao homem que ele não tinha se enganado na escolha da beleza para aquela noite.
E, ainda mais, o cheiro a sair do corpo feminino começava a deixá-lo em transe
ou, melhor dizendo, como um animal no cio.
Maria Rosa notou tudo isso.
− Coma primeiro pra ficar mais forte. Que “ôme”! Quase me
mata na noite passada. “Fudedô” do cacete tu é, visse?
− Esquece a comida. Não tenho fome alguma. É você...
− Eu sei... Sei... Mas será muito “mió cumê” o que eu trouxe e
deixar que eu faça uns consertos nesses arranhões. Desculpe, mas fui obrigada a
enfiar as unhas em tu antes da minha perseguida cair abaixo, visse?
− Você é linda! Você é...
− “Dispois... dispois... dispois... Seje” bonzinho e coma pra
ficar “fortinho”. Sou tua “subremesa”, certo?
A sobremesa, na realidade, foi um “repasto”
nunca experimentado por Marco Cícero. As carícias feitas em seu corpo pela
experiente mulher punham-no em estado de excitação tão desesperado, que via até
formigas deslizando nas paredes entrar em trabalhos sexuais.
Quando se compenetrou que deveria dar seqüência aos trâmites da
verdadeira paixão, sentiu a mulher tentando por todos os meios fugir do seu
contato. Mesmo assim ele buscava-a, sedento e faminto, querendo conhecer seus
ardilosos segredos, mergulhar nos seus recônditos mistérios. Sabia-se um bom
amante, mas naqueles instantes matutinos estava superando-se em todos os
sentidos. O desejo escorria por suas vísceras como as águas do Capibaribe
encontrando-se com as do Beberibe, buscando as espumas do mar.
De repente, notou como a mulher enfraquecia suas defesas, enfiava-se
com tudo e quase toda dentro dele, agoniada, molhada, deslizante, suada e
praticamente vencida. Ouviu-lhe o grito furioso de fêmea no cio, o gemido longo
e gutural, seguindo-se o gozo mais fantástico que ele nunca vira na vida. Pela
boca, pelos olhos, pelas narinas e pelos outros orifícios do sinuoso corpo,
Maria Rosa soltava longos e odoríficos vapores de fumaça branca e o envolvia
num abraço mágico e atordoante.
Voltando de suas reminiscências, Marco Cícero, antes de chamar sua
filha e pedir-lhe que pusesse a mesa para o café da manhã, exclamou:
− E
agora ela está morrendo! Como é que pode morrer uma mulher como aquela? Como é
que morre uma mulher como aquela?...
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