Conto
inserido no livro ‘O Espelho da Alma Janela” (2009) agraciado pela Academia
Pernambucana de Letras (APL) em 1988, com o Prêmio Leda Carvalho
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Estava sentada à mesa do bar bebendo
cerveja. E, eu, defronte, em outra mesa, a observá-la. Indeciso se devia
abordá-la ou não, matando duas solidões de uma vez só. No entanto, não sabia
como iniciar o diálogo. Falaria de quê? Nunca achei difícil entrar num assunto.
Mas, nessa hora, chegaram as dificuldades, como que criadas em um novo espaço
de timidez.
O bar estava cheio, entre homens e
mulheres, e ela era observada por muitos. Se, por acaso, eu desejasse conversar
com ela, teria de ser rápido, visto que nos dias atuais a possibilidade de uma
mulher continuar sempre sozinha numa mesa de bar é uma hipótese bastante
remota.
Claro, podia estar esperando alguém, e,
nesse caso, eu poderia fazer papel de bobo. De repente, depois de acender um
cigarro, levantei os olhos e aconteceu. Nos encontramos. Ela bateu na minha
porta. Eu abri suas janelas. Os seus olhos sorriram. Os meus olhos sorriram. O
corpo falou suavemente pedindo a minha presença. Eu fui.
– Duas cabeças se ajustam mais quando
juntas, estou certo?
– Completamente – respondeu ela.
– Esperando alguém?
– Você já está aqui.
– Matei sua solidão?
– Ajudou a enterrá-la.
Tão perto dela podia olhá-la mais
detidamente. Olhos negros. Mãos pequenas. Cabelos cor da noite. Delgada como
uma libélula. Nem feia nem bonita. Apenas mulher. Ela também me olhava. Como eu
não posso me ver assim nesses espelhos – os olhos de uma mulher – o que estaria
ela realmente vendo?
– Quem é você – perguntei.
– Eu?... Eu mesma.
– Não vai me dizer o seu nome?
– Não. Nem me diga o seu.
Não pude e nem desejei avançar mais com
outras palavras. Voltei a olhá-la bem nos olhos. Ela me olhava bem nos olhos.
– Você gosta de escutar seus pensamentos?
Agora mesmo eu andava a conversar com minha outra identidade. Não consigo
entender o motivo de a gente pensar e não fazer as coisas diretamente como nas
conversas com o consciente. Eu perguntei quem era e não me respondi. Você
perguntou quem eu sou e eu lhe digo que sou eu. Não acha isso interessante?
E a base dessa coisa interessante era ela
mesma. Não estava bêbada. Nem drogada. Realmente tinha sua própria filosofia.
– Você já imaginou como podemos ser
alcançados pelo sonho? Um sonho de milhares de anos? Um sonho de querer ser
exatamente aquilo que não podemos ser na vida real? Pois eu estava pensando
justamente nisso quando olhava para você. Imaginando você como algum ditador da
América Latina.
Franzi o cenho. Mais do que fascinante era
uma espécie além de todas as outras minhas conhecidas. Louca? Não digo isso. Enchi
meu copo com a cerveja e depois também o dela. Apenas um sorriso. Bebeu um
longo gole. Depois, acendeu um cigarro.
– Por que os homens não podem ver uma
mulher bebendo sozinha na mesa de um bar? Por que necessariamente tem de tentar
a aproximação? Fazer uma abordagem? E, se a mulher fizer a mesma coisa, por que
o julgamento do homem não se nivela àquele mesmo de quando é ele quem assim se
comporta?
– Se você achar que estou sendo
importuno...
– Não! Não é isso! Estou divagando e, além
do mais, quero você comigo. Insisto que fique comigo. Se você não tivesse
vindo, eu iria até você.
– Você é fascinante!
– Também está me achando meio gira, não?
– Repito que você é muito fascinante. Você
sabe que eu perdi o horário do ônibus da vida? Quando passou a oportunidade
maior eu nem vi a cor. Passou de raspão. Machucou meu corpo e minha alma.
Depois sumiu. Evaporou-se. Aqui estou eu, completamente aturdida. Todos os
homens são todos os homens. Desculpe-me, sim? Mas, na realidade, estou pronta
para tudo. Quando desejo, procuro o desejo. Quando não desejo, morro.
– Às vezes eu também fico assim...
– Eu gosto de escrever. Gosto de pensar.
Gosto da vida. Gosto de gostar. Todas essas coisas se tornam tão vazias quando
ficamos sozinhos...
– Bebamos à saúde da solidão!
– Estamos juntos e estamos sozinhos, não é
isso?
– Nunca estive tão junto sozinho de alguém
sozinho.
Ela riu. Pedi outra cerveja. Tudo estava
exótico. Ela pousou a mão direita no meu rosto. Quente e macia. Pertinhos um do
outro. Portanto, aconteceu.
O gosto adocicado de sua saliva a se
misturar com a minha saliva. A maciez de sua língua a fazer fronteira com a
minha língua. Seus dedos acariciando minha nuca. Apertei seu busto de encontro
a mim. Os seios firmes a se esmagarem contra meu peito. Quando paramos, ela
apenas sorriu. Outro beijo de leve no meu rosto.
– Gostei.
– Pode ser até melhor se tivermos mais
tempo.
– Você pode não ter notado – disse ela – O
fato é que nós somos os donos da noite.
– Já estou começando a notar. Quer mais
cerveja?
– Com você dentro.
Admiti a mim mesmo enredado em suas malhas.
Eu dentro e ela fora? Não! Os dois em uma forma só. Comecei a desejar compor o
lirismo desenfreado de amor e sexo guardados desde algum tempo. E, as
fantasias, colocá-las no voo ao espaço macio de sua carne. Precisávamos ambos.
Isso estava sendo óbvio.
– O amor é algo assim como um fantasma
tentando assombrar os moradores de uma casa e, quando consegue, ele mesmo fica
vulnerável. Se parece com uma guerra de emoções, cheia de truques e de
aprendizados.
– Você amou muito? - perguntei.
– Você amou muito? - respondeu perguntando.
Rimos e nos beijamos de novo.
– O interessante é que amanhã não nos
veremos mais. Interessante e calculado. Como a vida mesma
– Se você desejar nos veremos mais vezes.
– Não, meu querido. Eu posso estar
preparada para usufruir o momento de agora. Mas não quero misturar esse amor de
carne com o outro tipo de amor. Esse amor que estou sentido agora é de carne.
Fique sabendo que eu estou despojada de muitas velhas armaduras para enfrentar
o outro tipo de amor. Meus mecanismos de defesa eu perdi há muito tempo.
– Em que direção poderemos seguir?
– A direção comum. O que fazem um homem e
uma mulher quando sozinhos e juntos? O turbilhão de um sonho fantástico.
Deliciosas fantasias. Um ditador da América Latina e uma miss Universo.... O
que achou disso?
– Um ditador da América Latina pode não ser
um grande amante.
– Todo amor carnal é satisfatório, mesmo
quando apenas o fantasiamos.
– Ponha todos os ingredientes nisso. E que
tal estudarmos a fórmula mais adequada para nós dois? Os movimentos, as
carícias, os gestos...
– Tudo! Para que limitarmos nossos desejos?
E para que continuar a história? As chances
de abrir novas paisagens sobre a realidade desse encontro poderiam ficar
minguantes e descambar para a monotonia das repetições. Pensei numa frase
ouvida noutros dias: em algum lugar do mundo sempre existe uma mulher pronta
para a gente.
– Em qualquer espaço do mundo sempre existe
um homem que eu queira.
– Vejo que você gosta muito do amor físico.
– Quase isso. Sou muito desajeitada para
amar espiritualmente. Para mim o amor é muito mais fácil de ser feito que de
ser pensado.
– É uma ideia sua.
O ritmo da conversa parou nesse pedaço.
Apenas a pergunta teimando em sair dos olhos dela. Apenas o desejo a sair dos
olhos dela. Paguei a despesa e fomos para a rua. Os olhos de dentro do bar nos
seguiram, alguns invejosos, outros sorridentes. O satélite no negror do céu me
pareceu um bom presságio. Parei um táxi. Entramos. Partimos.
Íamos objetivar as nossas fantasias mais
concretas.
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