Do livro “Espelho da
Alma Janela” - 2010
Olhava para o vídeo do computador como que
hipnotizado. Tentava captar uma história, um conto para inserir naqueles
espaços em branco. Não sabia, porém, qual o período de abertura nem o pronome a
escrever, apesar de, em todos os seus outros escritos tivesse usado o você
muito mais do que o eu ou o tu. Para lembrar momentos passados, resolveu
divagar. Ficou em pé e deu alguns passos em sua sala de trabalho. Dirigiu-se
até a janela para fitar a paisagem metropolitana e um odor de vida cidadã
invadiu a sala. Nesse exato momento pensou nas coisas deixadas para trás. Nas
mulheres. Nos mais antigos enganos. Balançou a cabeça para espantar todos os
pensamentos ruins. A partir daí, descobriu que mesmo sendo um entre tantos era
apenas outro tanto de vida entre milhões.
E, então, recordou Vânia. O cheiro de
lavanda do seu corpo moreno logo invadiu o aposento. Seus pensamentos começaram
viajando na lembrança daquele corpo e por causa disso se deixou cair em uma das
poltronas da sala, fechou os olhos e começou, vagarosamente, a viajar em
epidermes, em líquidos vaginais, em sabores salgados e doces, em delírios de
sexo e de bebida. Agora não conseguia espantar essas imagens por mais que
tentasse. Contra sua vontade caminhou até o computador, tentou teclar para iniciar
o conto, mas se descobriu pensando em realidades diversas e de como estava se
tornando impossível deslizar ao universo de ficção nesse momento em que as
coisas do mundo buscavam a realidade maior dentro de sua casa, nas coordenadas
de suas pupilas, no seu norte e sul corporais.
– Merda! – esbravejou.
Em seu catre de madeira, Clodoaldo fumava o
cigarro de palha em plena letargia do nada e do sem. A lua cheia dominava todas
as paisagens de seca na terra árida do sertão. A frialdade da noite envolvia seu
corpo despido como se querendo colocá-lo na amplidão noturna do vento e do
frio. “Os lobisomens talvez estejam
soltos por aí”. Ao lado dele, o corpo adormecido de Marinês já o
recompensara de todos os sacrifícios do dia. O forte odor que emanava da carne
feminina o embriagava, fazendo com que tragasse cada vez mais profundamente a
fumaça do cigarro de palha, até que nada mais restasse entre seus dedos.
Levantou-se do catre, tomando cuidado para não despertar a mulher. Abriu a
porta de trás do casebre de taipa e caminhou até os fundos do quintal. Desse
local podia divisar, ao longe, a cidade de Serra Talhada abandonada ao sono.
Agachou-se como qualquer homem do mato.
Arrancou um pedaço de erva dentre as poucas a brotar do ressequido chão e ficou
a mordiscá-la. “Lobisomens não existem”.
Por bastante tempo continuou nessa posição, tentando dar um certo sentido aos
seus pensamentos. De repente, descobriu: a única coisa a se enovelar e a se
perder na sua mente era simplesmente imaginar algo que não fosse o simples
desejo de pensar. O ranger da porta o despertou. Sentiu a seu lado o cheiro do
corpo suado de Marinês a perturbá-lo como nunca.
– Vem dormir Clodô! – ouviu ela chamar.
E tinha de ser assim. O cheiro intenso da
fêmea a envolver suas narinas trazendo lembranças de outras mulheres. Só que
essa última o tinha possuído bem. Fizera-o verter o suor do corpo em trabalhos
forçados no meio das macambiras e das plantas rasteiras do semi-árido. De
repente, ele se descobriu cidadão do Recife, homem da Rua da Guia, nos braços
de Genoveva, no fim da noite e início da manhã, quando a mulher despedia o
último cliente. Logo ao entrar no quarto dela ia baixando os tabefes até perder
a conta e ela se aninhar entre suas pernas, sugando seu membro enrijecido,
tirando suas roupas e lambendo todo seu corpo como uma gata obediente sem
deixar de salivar em todos seus interstícios até vê-lo gozar feito louco,
saboreando o suor e o sêmen a sair do seu corpo de macho. Depois, ele a possuía
com calma, devagar, carícias sutis levando a carne feminina a um delírio
inverso, quase sem tocá-la, maciamente como convém (e ele assim se julgava) a
um bom amante.
– Pouca coisa hoje! Toma o dinheiro! Toma!
– exclamava ela.
“Lobisomens
não existem”. E toda vez olhava a lua cheia saindo por sobre as serras do
sertão, dardejando seus raios na caatinga, criando fantásticas imagens nas
sombras dos cactos e dos mandacarus. Olhava o gado magérrimo no meio dessa
paisagem caótica, alguns bois ruminando o restante das folhas de palma
deglutidas durante o dia. Agora já fizera a barba e estava vestido com uma
roupa diferente. Na rodovia, logo na saída do município de Serra Talhada, o
iluminar da lua era mais constante. Sobre o asfalto escuro essa claridade
trazia até sua mente a lembrança de uma das ruas de sua infância, chamada nos
mapas da cidade de Avenida da Liberdade e que, por ironia do destino o tinha
levado a ser o que era hoje: um homem totalmente livre. Em uma noite assim
também trouxera até seus braços o dom que dava prazer à sua vida e à sua libido.
E Martinha...
No portão de uma casa de vila, corpos
abraçados, mãos se perdendo numa busca constante de carne e de locais mais
lúbricos, tendentes a levar o resto do corpo à criação completa do desejo... As
flores do jardim: rosas e açucenas, jacintos, jasmins e o sabor salgado da
carne macia a atormentar seus sentidos, ambos dezoito anos, rapaz e menina,
homem e mulher, pensamentos ainda inconsequentes no que se queria ou não
realizar. A lua cheia iluminando os atributos viris, os seios a escapar do
vestido de festa, os pelos úmidos do ventre entre os seus dedos... “Os lobisomens talvez estejam soltos por
aí”.
Caminhando pela rodovia ele navegava os
pensamentos sob a luz do satélite. Em que pensava mesmo? No que poderia ter
sido sua vida ou no que já fora? Sabia que ser era uma constância da
existência, mas quanto ao ter sido, a vida já se responsabilizara em corroer
durante todo seu espaço giratório. Não pensava na caminhada. Tudo era mesmo uma
longa viagem. Para onde tivesse que ir, um dia chegaria ao destino. Um tanto
distante de Serra Talhada fez sinal a um caminhão. O veículo deslizou manso até
o acostamento e esperou. Ele subiu na boleia e depois de se acomodar ao lado do
motorista e responder às suas perguntas, inquiriu para onde se dirigia. “Para o Recife”, foi a resposta. Sorriu
intimamente. Estava satisfeito consigo mesmo. “Lobisomens não existem...” Vânia... Marinês... Genoveva... Martinha...
A luz do satélite batendo em cheio no para-brisa do veículo... Tentava dormir,
mas o sono não conseguia chegar como ele queria. Vinha esparso. Quase vazio a
trazer rostos que passaram por sua vida. Voltava para o Recife. De lá nunca
deveria ter saído. Sua história era mais cidadã do que interiorana e estava
ligada às mulheres de vida fácil, às ruas do baixo meretrício, aos companheiros
de farra da zona portuária. Quando lá chegasse – pensou –, a primeira coisa que
faria: beber algumas cervejas no boteco do Valdemar.
O vídeo do computador mostrava um espaço
completamente branco. Todos os pronomes, substantivos, adjetivos, os períodos e
as concordâncias verbais eram pensamentos de si mesmo. O cinzeiro refletia o
tempo que passara sem nenhuma linha escrita para o real, mas com tantas outras
bem alinhadas na memória do seu cérebro para só ele conhecer, ler e sentir o
prazer de sempre. Dirigiu-se à janela voltando a fitar a paisagem noturna do
Recife. Era outro tanto de vida entre milhões. Seu espaço comum e menos
vulnerável.
“Lobisomens não existem”, continuava pensando e antegozando a delícia do seu próximo
crime.
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