quarta-feira, 26 de junho de 2019

VIAJANTE DA NOITE – Rafael Rocha

Do livro “Espelho da Alma Janela” - 2010

Olhava para o vídeo do computador como que hipnotizado. Tentava captar uma história, um conto para inserir naqueles espaços em branco. Não sabia, porém, qual o período de abertura nem o pronome a escrever, apesar de, em todos os seus outros escritos tivesse usado o você muito mais do que o eu ou o tu. Para lembrar momentos passados, resolveu divagar. Ficou em pé e deu alguns passos em sua sala de trabalho. Dirigiu-se até a janela para fitar a paisagem metropolitana e um odor de vida cidadã invadiu a sala. Nesse exato momento pensou nas coisas deixadas para trás. Nas mulheres. Nos mais antigos enganos. Balançou a cabeça para espantar todos os pensamentos ruins. A partir daí, descobriu que mesmo sendo um entre tantos era apenas outro tanto de vida entre milhões.
E, então, recordou Vânia. O cheiro de lavanda do seu corpo moreno logo invadiu o aposento. Seus pensamentos começaram viajando na lembrança daquele corpo e por causa disso se deixou cair em uma das poltronas da sala, fechou os olhos e começou, vagarosamente, a viajar em epidermes, em líquidos vaginais, em sabores salgados e doces, em delírios de sexo e de bebida. Agora não conseguia espantar essas imagens por mais que tentasse. Contra sua vontade caminhou até o computador, tentou teclar para iniciar o conto, mas se descobriu pensando em realidades diversas e de como estava se tornando impossível deslizar ao universo de ficção nesse momento em que as coisas do mundo buscavam a realidade maior dentro de sua casa, nas coordenadas de suas pupilas, no seu norte e sul corporais.
– Merda! – esbravejou.
Em seu catre de madeira, Clodoaldo fumava o cigarro de palha em plena letargia do nada e do sem. A lua cheia dominava todas as paisagens de seca na terra árida do sertão. A frialdade da noite envolvia seu corpo despido como se querendo colocá-lo na amplidão noturna do vento e do frio. “Os lobisomens talvez estejam soltos por aí”. Ao lado dele, o corpo adormecido de Marinês já o recompensara de todos os sacrifícios do dia. O forte odor que emanava da carne feminina o embriagava, fazendo com que tragasse cada vez mais profundamente a fumaça do cigarro de palha, até que nada mais restasse entre seus dedos. Levantou-se do catre, tomando cuidado para não despertar a mulher. Abriu a porta de trás do casebre de taipa e caminhou até os fundos do quintal. Desse local podia divisar, ao longe, a cidade de Serra Talhada abandonada ao sono.
Agachou-se como qualquer homem do mato. Arrancou um pedaço de erva dentre as poucas a brotar do ressequido chão e ficou a mordiscá-la. “Lobisomens não existem”. Por bastante tempo continuou nessa posição, tentando dar um certo sentido aos seus pensamentos. De repente, descobriu: a única coisa a se enovelar e a se perder na sua mente era simplesmente imaginar algo que não fosse o simples desejo de pensar. O ranger da porta o despertou. Sentiu a seu lado o cheiro do corpo suado de Marinês a perturbá-lo como nunca.
– Vem dormir Clodô! – ouviu ela chamar.
E tinha de ser assim. O cheiro intenso da fêmea a envolver suas narinas trazendo lembranças de outras mulheres. Só que essa última o tinha possuído bem. Fizera-o verter o suor do corpo em trabalhos forçados no meio das macambiras e das plantas rasteiras do semi-árido. De repente, ele se descobriu cidadão do Recife, homem da Rua da Guia, nos braços de Genoveva, no fim da noite e início da manhã, quando a mulher despedia o último cliente. Logo ao entrar no quarto dela ia baixando os tabefes até perder a conta e ela se aninhar entre suas pernas, sugando seu membro enrijecido, tirando suas roupas e lambendo todo seu corpo como uma gata obediente sem deixar de salivar em todos seus interstícios até vê-lo gozar feito louco, saboreando o suor e o sêmen a sair do seu corpo de macho. Depois, ele a possuía com calma, devagar, carícias sutis levando a carne feminina a um delírio inverso, quase sem tocá-la, maciamente como convém (e ele assim se julgava) a um bom amante.
– Pouca coisa hoje! Toma o dinheiro! Toma! – exclamava ela.
“Lobisomens não existem”. E toda vez olhava a lua cheia saindo por sobre as serras do sertão, dardejando seus raios na caatinga, criando fantásticas imagens nas sombras dos cactos e dos mandacarus. Olhava o gado magérrimo no meio dessa paisagem caótica, alguns bois ruminando o restante das folhas de palma deglutidas durante o dia. Agora já fizera a barba e estava vestido com uma roupa diferente. Na rodovia, logo na saída do município de Serra Talhada, o iluminar da lua era mais constante. Sobre o asfalto escuro essa claridade trazia até sua mente a lembrança de uma das ruas de sua infância, chamada nos mapas da cidade de Avenida da Liberdade e que, por ironia do destino o tinha levado a ser o que era hoje: um homem totalmente livre. Em uma noite assim também trouxera até seus braços o dom que dava prazer à sua vida e à sua libido. E Martinha...
No portão de uma casa de vila, corpos abraçados, mãos se perdendo numa busca constante de carne e de locais mais lúbricos, tendentes a levar o resto do corpo à criação completa do desejo... As flores do jardim: rosas e açucenas, jacintos, jasmins e o sabor salgado da carne macia a atormentar seus sentidos, ambos dezoito anos, rapaz e menina, homem e mulher, pensamentos ainda inconsequentes no que se queria ou não realizar. A lua cheia iluminando os atributos viris, os seios a escapar do vestido de festa, os pelos úmidos do ventre entre os seus dedos... “Os lobisomens talvez estejam soltos por aí”.
Caminhando pela rodovia ele navegava os pensamentos sob a luz do satélite. Em que pensava mesmo? No que poderia ter sido sua vida ou no que já fora? Sabia que ser era uma constância da existência, mas quanto ao ter sido, a vida já se responsabilizara em corroer durante todo seu espaço giratório. Não pensava na caminhada. Tudo era mesmo uma longa viagem. Para onde tivesse que ir, um dia chegaria ao destino. Um tanto distante de Serra Talhada fez sinal a um caminhão. O veículo deslizou manso até o acostamento e esperou. Ele subiu na boleia e depois de se acomodar ao lado do motorista e responder às suas perguntas, inquiriu para onde se dirigia. “Para o Recife”, foi a resposta. Sorriu intimamente. Estava satisfeito consigo mesmo. “Lobisomens não existem...” Vânia... Marinês... Genoveva... Martinha... A luz do satélite batendo em cheio no para-brisa do veículo... Tentava dormir, mas o sono não conseguia chegar como ele queria. Vinha esparso. Quase vazio a trazer rostos que passaram por sua vida. Voltava para o Recife. De lá nunca deveria ter saído. Sua história era mais cidadã do que interiorana e estava ligada às mulheres de vida fácil, às ruas do baixo meretrício, aos companheiros de farra da zona portuária. Quando lá chegasse – pensou –, a primeira coisa que faria: beber algumas cervejas no boteco do Valdemar.
O vídeo do computador mostrava um espaço completamente branco. Todos os pronomes, substantivos, adjetivos, os períodos e as concordâncias verbais eram pensamentos de si mesmo. O cinzeiro refletia o tempo que passara sem nenhuma linha escrita para o real, mas com tantas outras bem alinhadas na memória do seu cérebro para só ele conhecer, ler e sentir o prazer de sempre. Dirigiu-se à janela voltando a fitar a paisagem noturna do Recife. Era outro tanto de vida entre milhões. Seu espaço comum e menos vulnerável. 
“Lobisomens não existem”, continuava pensando e antegozando a delícia do seu próximo crime.

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