terça-feira, 23 de julho de 2019

FORNO Nº 8 – Rafael Rocha


Conto inserido no livro “O Espelho da Alma Janela” (2009) agraciado pela Academia Pernambucana de Letras (APL) em 1988, com o Prêmio Leda Carvalho. No ano de 1989 este foi um dentre cinco contos do autor premiados pela Fundarpe e publicado no livro “Novos Ficcionistas Pernambucanos”
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– Agora você terá de ficar aí sentado, esperando… Mas esperando sem saber o quê. O tempo não terá tamanho nem poderá ser contado.
– Não entendo… O que eu fiz foi ao gosto comum, próprio a mim. Não posso fazer o que penso que posso fazer?           
– Sua casa era pintada de branco. Por que a pintou de vermelho?
– Gosto da cor vermelha.
–- Só porque gosta?
– Reflete a mentalidade buliçosa da alma humana.
– Que sabe você da alma humana?
– Nada. Você sabe?
– Por que matou Leônidas?
– Não matei Leônidas?
– Consta nos autos…
– Não matei Leônidas pelo simples fato de que não sei quem é Leônidas.
– O morto no quintal da sua casa era Leônidas.
– Não sabia disso.
– Você o matou…
– Dei um tiro em alguém que invadiu minha privacidade.
– O nome desse alguém era Leônidas.
– Não sabia disso.
– Devia saber.
– Quem era Leônidas?
– O Supervisor!
– E um supervisor pode invadir uma propriedade privada?
– O Supervisor pode tudo!
– Eu também sou supervisor e nunca tive esse tipo de comportamento.
– Ao que eu saiba…
– Você também é supervisor. Também se comporta assim?
– Tudo isso porque pintou a casa de vermelho…
– Quem é você?
– Seu advogado.
– Parece-se mais com um juiz.
– Advogar uma causa também é julgar. Não sabe disso?
– Eu não preciso de advogado!
– Por que matou Leônidas?
– Não matei Leônidas!
– Por que pintou sua casa de vermelho?
– Gosto da cor vermelha!
– Sabe que você vai ficar aí sentado, esperando, esperando a vida inteira se não tiver boa vontade e contar a história certa?
– Não existe história. Hoje ninguém espera. O tempo é uma utopia.
– Seu nome é Álvaro, não é?
– Hum…
– Álvaro da Silva, não é isso?
– Você quer saber quantos xarás eu possuo por esse mundo afora?
– Não me interessa! Que diz em sua defesa?
– Não sabe como eu me chamo? Será que isso é importante? De que vale o nome de uma pessoa quando ela é algo comum? Eu sou um homem comum, entendeu? Nasci, cresci e aqui estou. Eu e a minha vulgaridade. Fiquei adulto e nesse ponto da vida nem sei se consegui pensar melhor sobre mim mesmo, sobre meu significado. Para que minha defesa? Se eu sou um homem comum ela também deve ser, acho. Casei com uma mulher comum e tenho certeza que nossos filhos vão ser pessoas comuns. Sou um trabalhador comum e quero continuar a sê-lo, apesar de saber os muitos empecilhos. Além disso…
– Pintou sua casa de vermelho…
– Isso também é muito comum. Todos deviam fazer isso…
– E matou Leônidas. Acha isso comum?
– Raro hoje em dia é o gesto inesquecível de um beijo. É tão comum matar nem que seja lá dentro do coração…
– Por que matou Leônidas?
– Não matei Leônidas!
– E o homem morto no quintal de sua casa?
– Era um invasor!
– Era Leônidas!
– Não sei quem é Leônidas!
– O nosso supervisor!
– Não tenho supervisor.
– Todos temos um supervisor.
– Eu não tenho.
– É impossível alguém não ter um supervisor.
– Sou um homem comum.
– Será que por ser comum não pode ter um supervisor? Os homens comuns quase nunca fazem coisas corretas na vida e precisam de um supervisor.
– E o supervisor? Ele faz tudo certinho na vida?
– Ele também tem o seu próprio supervisor. Ele não é nenhuma raridade de espécime.
– Todos são vigiados?
– Não é caso de vigilância. É para que nunca haja erro no comportamento. Você errou…
– Como assim?...
– Pintou sua casa de vermelho.
– E daí?
– E matou Leônidas!
– Não matei Leônidas!
– Porra!.. Está certo, então. Matou um homem!
– Mentira!
– Seu Supervisor!
– Não tenho supervisor!
– Todos temos!
– Que os supervisores vão à merda!
– Você é um criminoso! Nossa sociedade não comporta criminosos!
– Vá tomar no cu!
– Você gosta de pensar sozinho! Você não deve pensar sozinho!
– Vá se foder!
– Leônidas pensava por você e você o matou.
– Foda-se! Eu sou um homem comum. Tenho prazer de pensar por mim mesmo!
– Grande coisa!
– Tenho que pensar sozinho, ora porra! Basta que eu pense por mim mesmo!
– Não deve! É contra as regras!
– Não preciso de supervisores!
– Não devia ter pintado sua casa de vermelho.
– Isso é problema meu. Gosto da cor vermelha.
– Você vai ser castigado. Você errou bastante. Você não devia ter morto Leônidas.
– Matei um marginal! Matei um invasor da minha privacidade. Não conheço Leônidas! Por isso não matei Leônidas!
– Temo que nada mais possa fazer por você. Você não quer contar a história certa.
– Não sei inventar história!
– Pela última vez: por que pintou a sua casa de vermelho?
– Gosto da cor vermelha.
– Por que matou Leônidas? Por que matou o seu Supervisor?
– Supervisor? O que é isso? Quem é Leônidas?
– Você se acha livre?
– Sou um homem!  
– Tolo! Tonto! Otário! Não mais existem homens. Deixe de ser tão irritantemente inimigo do óbvio. Hoje todos são coisas. Coisas manipuladas. Cada coisa com o seu supervisor. Cada supervisor é uma coisa e existe a coisa maior que a tudo supervisiona.
– Mas eu sou um homem!
– Não é. Juro que não é. Você não manda em você. Compreenda. Você é uma coisa. Hoje os homens não podem existir.
– Eu existo!
– Não está sendo lógico. Mas, pela última vez, por que matou Leônidas?
– Eu sou humano!
– Por que matou Leônidas?
– Eu penso por mim mesmo!
– Não pode! POR QUE MATOU O SUPERVISOR, SEU FILHO DA PUTA?
– EU SOU LIVRE!
– Por isso pintou sua casa de vermelho?
– EU SOU LIVRE! EU SOU LIVRE! EU SOU LIVRE!
– Guardas! Guardas! Levem o preso!
– Para onde? As celas estão cheias! 
– Forno crematório número 8. E andem depressa! Essa coisa pensa que pensa!

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