terça-feira, 23 de julho de 2019

OLHOS ABERTOS PARA A MORTE – Rafael Rocha

Terceiro capítulo do livro homônimo lançado no ano de 2012 – Agraciado com Menção Honrosa pela Academia Pernambucana de Letras (APL) – Prêmio Vânia Souto Carvalho (2011)
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Acordava sempre às seis da manhã e após o desjejum sua mãe o levava até a parada do ônibus, no rumo da escola. Era um aluno aplicado. No entanto, sua aplicação baseava-se no simples fato de que se não cumprisse o que lhe era ordenado, iria sofrer as penas do inferno. Uma vez, gazeou dois dias de aulas por conta própria, passeando de trem desde a estação de Jaboatão à do Recife. Seu pai soube. O carrancudo coronel do Exército, Wellington Clemens, acorrentou-o no quarto no fim de semana. Colocou livros e cadernos no chão. Abriu-os, mostrando os deveres ainda não feitos.
Sentiu-se despido vagarosamente. Nu, amarrado pelos pulsos a um dos caibros do telhado, viu seu pai vendar-lhe os olhos. Escutava o pranto da mãe vindo de algum recanto da casa. Tentou gritar, mas estava com a boca amordaçada. “Lembre-se que isso é para o seu bem! Não coloquei filho no mundo para ser outro vagabundo de merda!”, escutou o pai dizer.
A primeira vergastada alcançou suas nádegas. Era o cinturão de couro de jacaré do pai. A segunda vergastada atingiu suas costas. A terceira novamente suas nádegas. A partir daí, começou a ser surrado com calma, sem clemência, para que pudesse sentir a dor e a agonia. Nas nádegas, nas barrigas das pernas, nas costas. O cinturão atacava metodicamente. A dor era insuportável. Como não podia gritar, o corpo suava, parecendo pedir socorro. “Para você lembrar que isso é para seu bem! Eu penso no seu futuro! Filho meu não vai ser qualquer vagabundo safado!”, escutava a voz do pai, e lá vinha outra vergastada do cinturão de couro de jacaré.
Tinha perdido a conta de quantas chibatadas levara naquele dia. Mas desse momento em diante aprendera que a obediência era a única solução possível. Não tinha força alguma para enfrentar o tamanho de homem que era seu pai. Após a surra, a venda foi retirada junto com a mordaça. “Você mereceu isso, rapaz! Fiz isso para seu bem. Não falte mais as aulas. Estude! Olhe seus cadernos no chão. Vai estudar, não vai?” Olhou para o pai. A mãe agora estava ao seu lado, com um pano úmido a passar no seu corpo castigado. A pele estava rubra devido às vergastadas. Anuiu com a cabeça. E começou a pegar os livros e a levá-los até sua mesinha de estudo no quarto.
À noite, antes de dormir, o coronel Clemens o chamou até a sala. Tinha 13 anos quando isso aconteceu e desde esse dia, descobriu que obedecer tem de ser com dor. “A partir de hoje, antes de dormir, vamos cantar o hino”, disse o pai. “Qual hino?”, perguntou ele. “Nosso hino! O hino que faz os homens serem fortes!” 
Aprendeu rápido a cantar. Todas as noites antes de dormir, lá pelas nove horas da noite, ele e o pai se juntavam na sala de estar e cantavam: “Nós somos da Pátria a guarda / Fiéis soldados / Por ela amados / Nas cores de nossa farda / Rebrilha a glória / Fulge a vitória”.

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